À Caso

Dois goles de cerveja ainda gelavam minhas amídalas quando por ali passei. Sozinho.

Sozinho e sem peso, pela primeira vez depois da vida inteira. Caminhava em meio a 11 milhões de pessoas e me sentia único e particular e parte integrante de um mundo que gira em torno de si diariamente. Metafóricamente, ou não, o mundo faz muito mais spoiller de si mesmo do que gostaria. O que importa na verdade é que, com essa metáfora, aprendi a também girar em torno do meu eixo. Por isso, caminhei sozinho. Todo o dia, realizando a cartografia afetiva de uma cidade que não era minha. Ainda (?)

Já era início de noite e os neons já se destacavam em meio ao concreto. Roxos, lilazes, verdes... iluminavam meus caminhos e me conduziam para o nada. Ao sabor do vento. Ao prazer do acaso. 
E, por acaso, ali parei. Minhas amídalas, outrora resfriadas, clamavam por mais líquido. 
Assim, já tinha um novo objetivo: comprar água. E, ao pensar sobre o quão peculiar era o fato daquele bar parecer uma padaria, vi algo trivialmente improvável. Afinal, porque diabos alguém resolve escrever um best-seller as 21:48h de uma segunda-feira solitária na região mais movimentada da cidade? Um questionamento que definitivamente não mudava muito minha vida ou meus objetivos, no caso comprar água. Adentrei o bar/padaria. E, incrivelmente a janela era a moldura perfeita (e também única passagem de ar) para observar aquele curioso escritor. Assim, por curiosidade, fitei-o. Surpresa: Ele também me fitava. Com olhos de quem reunia toda a serenidade do mundo que gira em torno de si mas que também gira ao redor do sol e ainda é o único vizinho azul de outros astros. Pude perceber ainda a linda barba levemente grisalha que servia de invólucro para um doce sorriso de uma alma sem idade. 
A fila andou. e andou até que chegasse minha vez. E daí, eu andei, até a porta do bar. Olhares ainda se cruzavam. Até que ele, o escritor, sugerisse que me sentasse com ele. O mundo ainda girava até então.
Poucos minutos se passaram e já havia descobrido que o que ele escrevia eram despretensiosas memórias, que tinha um imenso bom gosto para camisetas e que, por acaso, dividímos exatamente a mesma rota afetiva por aquela cinza cidade por todo o dia, separados apenas por uma fração de minutos, minutos estes originários das ditas rotações do planeta azul. Planeta azul que abrigava o estado o qual eu e ele éramos originários, e que por ventura não era o que nos encontrávamos naquele momento. 
Mais minutos se esvairam. Não muitos, mas o suficiente para descobrir mais sobre ele, o escritor. Descobri que ambos morávamos numa ilha, não mais a mesma, e que ele, o escritor, possuía outros tantos gostos e lugares em comum. Frequentamos alguns mesmos espaços, estudamos no mesmo lugar, descobrimos umas dúzias de mesmas músicas, separados mais uma vez e apenas por algumas rotações que ele possuía a mais do que eu.
E dividíamos a segunda cerveja quando nossas mãos se tocaram. O caderno e a caneta foram guardados. Muitos outros risos e olhares foram trocados e, enquanto observava cada um dos 110.000 fios de cabelo encaracolado que ornavam sua tez ele, o escritor, teve o ímpeto de tocar seus lábios nos meus. Sim, o mundo ainda girava. Só que dessa vez ao redor de nós dois. E, sinceramente, não o sentia girar. Levantamos, ainda unidos, e percebi que ele, o escritor, era levemente menor que eu, o que me dava a real sensação de tê-lo por inteiro em meus braços.
Creio que ele também não sentia a rotação do planeta azul. Apenas nos sentíamos. Descobríamos com afinco cada detalhe do território desconhecido do outro, cada marca de história, cada jeito de olhar. E assim, num olhar, o escritor se descobriu encantado com meus olhos tão negros como a noite. E foi assim que me tornei o menino de olhos negros e ele, o rapaz do acaso. 

Acaso. Minhas poucas rotações me fizeram cético a sua existência. Apenas até descobrir ele, o escritor. Descobrir que ele estivera ao meu redor todo o tempo e que ainda era taurino e que ainda tinha o mesmo hábito de andar pelos mesmos lugares sozinho. Sermos sozinhos era apenas uma alegoria dele, o acaso, para nos encontrarmos. Em meio aquelas 11 milhões de pessoas.

E assim passamos aquela noite juntos. E o dia seguinte juntos. E a noite após o dia seguinte juntos. E, por fim, retornamos às nossas ilhas, que já não eram mais a mesma.

E mesmo aqui, na minha ilha, anseio pelo dia em que ele, o acaso, nos presenteie com mais um encontro, leve como os outros presenciais e virtuais. O mundo continuou a girar. Diariamente ao redor de si. 365 vezes no ano. E, num desses recortes de tempo-espaço eu sei que o planeta azul girará novamente ao redor de nós dois. À caso.








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